Manchester à Beira Mar

Manchester à Beira-Mar - filme 2016 - Casey Affleck - Cinema e Psicanálise
Manchester à Beira-Mar 2016 filme poster
“Eu não consigo superar.”

O que leva alguém a não conseguir superar? 

Lee Chandler não consegue superar. Ele tem muito a nos ensinar sobre as variantes desse tema tão importante que envolve culpa, luto, seguir em frente.

Vamos mergulhar no drama de Lee?

Imagino que você tenha assistido esse filme. Se não, aviso, tem spoilers. Mas antes, uma palavra do Diretor Kenneth Lonergan, o sujeito do filme. A Doutora em Psicologia Parcilene Fernandes nos informa que “era a angústia sem fim que geralmente nasce da vivência de grandes tragédias que ele estava interessado em trazer à tona.” E vem a pergunta de “como algumas pessoas sobrevivem a situações que são maiores que elas próprias, que são simplesmente esmagadoras. E acrescenta ainda que a disparidade e a variedade da experiência humana, de como uma pessoa pode ter um tipo de vida e seu vizinho ter outro completamente diferente em todos os aspectos, provocam seu fascínio e o impressionam, mas também confundem a sua percepção das coisas.”

O filme encena esses dramas e nos aponta algumas respostas.

O que sabemos de Lee Chandler?

Ele é um “faz tudo.” O chefe o define: “Você é rude, é hostil, não dá ‘bom dia’. Está desinteressado pela vida. Os investimentos sedutores das mulheres não o alcançam. Sua posição pode ser a de um depressivo. Lee está agressivo, bate em gays num bar.

Chega a notícia da morte do irmão. Ele quase não reage. Da morte, já parece conhecer o enredo, em certa medida sua posição subjetiva é uma identificação com a morte, conforme nos ensina Pierre Fédida, psicanalista francês, ao se referir ao depressivo.

Nesse momento, diante da morte do irmão, aparece o inconsciente, no lugar e momento que revelam o ponto de parada do Sujeito. Eis o inconsciente, se mostrando na linguagem: “Alguém devia avisar a minha mulher.”

Ele não tem uma mulher! E vem a correção: “Ex-mulher”.

Aqui já sabemos que ele está preso no passado, que algo não passou. A negação, em suas mais variadas formas (recalque, denegação, rechaço, foraclusão, esquecimento, renegação…) permite fazer o inconsciente se mostrar, isso quando é escutado. E com isso fazer com que o Sujeito possa falar de seu drama, aquele que o petrifica e produz angústias e sintomas. 

Lee Chandler me faz pensar muito nas vidas dos Sujeitos cujas histórias e dramas do passado não são conhecidos por aqueles com quem ele convive. Muitos se relacionam socialmente e atualizam esses dramas com completo desconhecimento por parte de seus pares, colegas de trabalho, de estudo, vizinhos… Muitos são sofredores, depressivos, e as causas dessas depressões misteriosas estão calcadas em histórias de perdas, rupturas, tragédias, segredos sobre o Desejo. O desconhecimento sobre as causas do sofrimento psíquico faz com que a família e outros vínculos sociais, não consigam tolerar o depressivo, o enlutado, o sujeito culpado. 

Mas nós sabemos a causa do sofrimento em Lee Chandler.

Eis a tragédia: Ele bebe, faz frio, a lareira está acesa, sai para comprar algo, esquece de colocar a tela na frente lareira, uma fagulha, ele volta para casa, a casa toda em chamas, seus filhos morrem. Em câmera lenta, uma música nos envolve, somos tragados para a cena, sofremos com ele. Queremos negar que aquilo esteja acontecendo, não é possível, raiva do diretor, como pode ser tão cruel a criar uma cena dessas?

Como sobreviver a essa inevitável culpa?

Inevitável? Alto lá. De quem estamos falando?

Lee sofre porque é humano! E aqui humano é uma qualidade de quem sente e se responsabiliza por seus atos. Diferente disso é tentar justificar a realidade a favor de seu narcisismo e não se importar com a morte do outro ou com a morte de milhares de outros. Essa é uma boa diferença entre a Neurose e a Perversão na modalidade psicopática. 

Na delegacia ele espera por punição e ao ouvir que “não é crime esquecer de por tela na lareira”, ele saca a arma do policial e tenta se matar.

Ele não é suicida. Naquele momento a invasão do Real, traumática, é tão forte, inescapável, que a agressividade se volta contra si. A culpa Real, não neurótica, o ataca de forma violenta. Quando se trata de um trauma causado por outro, o ódio é primeiramente direcionado ao outro e depois internalizado. Aqui, não há o outro a quem se possa dirigir o ódio.

Anos após essa tragédia, e por conta da morte do irmão, Lee retorna a Manchester.

E acontece o reencontro com a ex-esposa. Eles não conseguem conversar.

Ela sente uma culpa pelo que disse a ele no dia da tragédia. Sua culpa (a dela) é a de tê-lo culpado. Apesar disso, consegue reorientar sua vida, superar as perdas, fazer o luto. Ela está casada, tem filho e está grávida. 

Já a culpa e tristeza em Lee Chandler não o permitem se relacionar. Precisa punir-se e evitar a via sexuada.

Maria Rita Kehl diz sobre o depressivo, que “…ele tenta pagar a dívida através da tristeza. (…) condena-se a nunca se separar da tristeza, sob pena de se sentir em dívida consigo mesmo…”

Precisamos pensar numa clínica das tristezas humanas, dos sujeitos tristes, esses cuja face da tristeza esconde um modo de funcionamento psíquico baseado em uma economia do gozo e do sofrimento como compensação. Que encontra no sofrimento uma forma de pagamento para uma dívida ou culpa imaginárias. O que não lhe permite ser feliz? O que o condena a essa tristeza?

Ele perde os filhos, mas também a mulher, o casamento, a cidade onde morava, os amigos. Quanto luto a ser feito! Quais são possíveis e quais são impossíveis? Há lutos impossíveis? A vida de Chandler se vê agora às voltas com o luto, a culpa, o luto patológico, a Depressão, a negação.

Ele desenvolve condutas autodestrutivas e agressivas, provoca brigas em bar onde ele não tem a menor chance. Punir-se para aplacar uma culpa é uma conduta conhecida, lidamos com isso todos os dias no consultório.

Sempre que aparece um Lee Chandler no meu consultório me pergunto como será o desenlace dos eventos trágicos, dramáticos e traumáticos. A linguagem é pródiga em produzir caminhos e saídas surpreendentes!

Freud e Lee Chandler. 

Freud em seu texto Luto e Melancolia nos fará notar a perda da autoestima nos casos depressivos. E Lee tem um emprego onde é pouco valorizado, mora num cubículo e não quer móveis em sua casa. Freud também escreve sobre a perda da capacidade de amar. E Lee Chandler não responde às demandas sedutoras das patroas, no bar, da mãe da namorada do sobrinho. Freud fala do desânimo e Lee não mostra vontade e interesse por nada. E tem a expectativa de punição. Ante a impossibilidade da culpa em permitir a realização do luto, o Sujeito acaba por desenvolver os sintomas depressivos. É a condição do luto patológico, do luto interminável. 

Há chance para Lee Chandler?

Nesse tribunal interno que é a consciência, Lee se considera culpado. A Justiça não o condena por entender ter sido um acidente. Lee não sofreu uma punição vinda do Outro, reconhecida pelo Outro, que aliviaria seu “crime”. Assim, a culpa fica internalizada e quem é culpado não merece e não pode ser feliz. Como ser feliz?

No arco dessa tragédia e diante da morte do irmão, Lee precisaria assumir o “lugar do irmão”. Porém, como assumir esse lugar? Ele que não foi capaz de cuidar dos próprios filhos? Lee entrega a tutela do sobrinho. Anuncia que vai embora. 

EU NÃO CONSIGO SUPERAR”. Lee Chandler não consegue sair desse lugar árido, sem fantasia, morto, sem futuro…

Tudo poderia terminar por aqui. 

Mas, uma aposta salvadora vem com uma frase dirigida ao sobrinho. Ele comunica que vai se instalar num lugar e que terá “MAIS UM QUARTO PARA QUANDO VOCÊ FOR ME VISITAR.”

Com essa frase, Lee Chandler por fim abre espaço para o sobrinho, para outro alguém na sua vida. Pode ser o começo de sua jornada para livrar-se da culpa e retornar à vida.

O psicanalista Juan David Nasio nos ajuda aqui a tentar salvar o Lee Chandler. Escreve ele: ”A imagem do ser perdido não deve se apagar; pelo contrário, ela deve dominar até o momento em que – graças ao luto – a pessoa enlutada consiga fazer com que coexistam o amor pelo desaparecido e um mesmo amor por um novo eleito. Quando essa coexistência do antigo e do novo se instala no inconsciente, podemos estar seguros de que o essencial do luto começou.” 

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