A Mulher que não faz concessão ao Desejo

Filme Aquarius 2016 - Cinema e Psicanálise
“Eu prefiro dar um câncer em vez de ter um.”

Certas frases fora de contexto podem assustar. A frase acima é proferida por Clara, após sofrer uma perseguição cruel e injusta. Contra um grupo poderoso liderado por homens de negócio que a todos atropelam, ela fez uma resistência digna. Ao colocarem cupins em toda a edificação para forçarem a saída de sua residência, ela aciona modos de defesa de um código conhecido pelos seus adversários e, ao final, triunfante, bombardeia com a frase acima, para êxtase da plateia que assiste ao filme e torce por ela. O câncer, ela já venceu um, sobreviveu, fez a opção pela vida. 

O diretor Kleber de Mendonça, o mesmo de Bacurau, O Som ao Redor e Retratos Fantasmas, fez um filme que fala do Brasil, das suas contradições, disputas, prestígios, desigualdades, violência, lógicas sociais, construção de pessoas e subjetividades. Um filme que fala da mulher e do quão desafiador é ser mulher no Brasil. Um filme que fala sobre várias mulheres, diferentes, estratificadas socialmente, na luta por se fazer reconhecer.

Acima de tudo, é um filme sobre memória, sobre passado, sobre valorizar a história como forma de alicerce para o presente e para o futuro. 

De um lado temos uma grande empresa interessada em demolir um prédio antigo e histórico para a construção de um novo empreendimento. De outro lado vive nesse prédio antigo uma mulher com suas lembranças, seus objetos, suas memórias. Entre eles, uma batalha desigual.

ALERTA DE SPOILER !

As colunas neste site são dirigidas a quem já assistiu a obra pois contém referências e revela elementos importantes sobre a história que poderão estragar a experiência de quem ainda não a assistiu. Recomendamos que assista toda a obra e depois volte para ler a coluna.

Filme Aquarius 2016 - Cinema e Psicanálise

QUANDO AS MÚSICAS (E SEUS AUTORES) SÃO PERSONAGENS

A trilha sonora forma um conjunto histórico de artistas e letras que continuam construindo memória. Temos Taiguara, Roberto Carlos, Altemar Dutra, Reginaldo Rossi, Ave Sangria, Queen, Gilberto Gil, Heitor Villa Lobos, Alcione e Paulinho da Viola. Vale prestar muita, mas muita atenção às letras de cada música escolhida. 

Ao som de Taiguara, a música Hoje nos faz saber que o corpo de Clara será personagem a nos guiar por memórias marcantes. “Hoje trago em meu corpo as marcas do meu tempo… Trago no olhar imagens distorcidas….” É o tema do filme. E aqui vale dizer que Taiguara, uruguaio de nascimento, cujo nome em tupi significa “livre, senhor de si” foi duramente perseguido durante a ditadura militar brasileira. Símbolo da resistência, teve 68 canções censuradas. 

Um salto no tempo nos apresenta Clara de cabelos curtos, são os anos 80, Queen embala uma trilha sonora reconhecida por quem viveu essa época, importante e dramática por aqui. 

A decoração que acontece com o tempo do filme “Aquarius” – As Casas do  Cinema

Os objetos ajudam a contar as histórias vividas naquela casa. Uma cômoda evoca lembranças picantes de um amor vivido, amor que valeu uma vida. Com ele as memórias ressuscitam e ajudam a lembrar quem fomos e por isso somos. 

Sentimental é a música de Altemar Dutra a nos revelar que sentimentos são importantes. Fala que quem amou ficou sentimental. 

Conhecemos tia Lúcia, mulher que vai inspirar Clara. Tia essa que fez a revolução sexual. Por isso pode falar de sexo e amor sem os ranços de uma cultura conservadora. Recorda cenas. 

O cabelo curto de Clara nos aproxima do câncer que venceu e lhe custou uma mama. Sonia Braga agora dá vida a essa Clara em idade adulta, ela, Sonia, formada na herança dos tempos da pornochanchada, atuou nos palcos dos teatros que faziam a resistência à ditadura, atuou no espetáculo Hair, alcança estrelato nas novelas. Dá vida aos livros de Jorge Amado.

Nesta fase seus cabelos estão longos, assim ela nos é apresentada. E com mais esse pulo no tempo logo vemos que os objetos de outrora ali estão, continuando a contar uma história, dando sequência simbólica a outras camadas de narrativas. 

Casa do teatro exibe o premiado filme “Aquarius" - Correio de Minas

Clara subverte seu entorno, nada em águas perigosas num mar de tubarões, com a ajuda e observação dos salva vidas que ela já conquistou. 

A marca do câncer nos familiariza com uma mulher que superou a mastectomia, sobreviveu a um câncer na década de 80. 

A construtora que quer demolir o prédio onde Clara mora chega com um molho de chaves na mão indicando já terem comprado os outros apartamentos. Os modos de pressão não assustam Clara. 

ENTRE O VELHO E O NOVO: A DESTRUIÇÃO DA MEMÓRIA

Comunicam a ela que o empreendimento vai se chamar “Novo Aquarius”, o novo substituindo o antigo, apagando a memória. 

Num ato falho revelador o neto do dono da empresa diz a palavra “existia”, referindo-se ao prédio. Ao que Clara, analiticamente, lhe interpela. “exsistia”?, indicando que ela está ali, viva. Ele ainda diz: “É modo de falar”. Justo, é no modo de falar e no que se fala que vemos a verdade transcorrer por onde não devia. A verdade que escapa e revela as reais intenções. O dilema entre passado e presente aqui se mostra dramático.

Mas clara vai além, pergunta qual o nome do antigo projeto, o nome que inicialmente pensado para o empreendimento que seria construído no lugar do Edifício Aquarius. Ao que recebe como resposta: Atlantic Plaza Residence. O que poderia parecer um nome sofisticado esconde e revela um passado de colonização, de imposição de uma língua diferente. O estrangeirismo revelando apenas a parte mais amena de um projeto cujo limite destrói a memória e os seus personagens. É a isso que Clara resiste. A ser apagada. A ser colonizada.

O nome da construtora é Bonfim. Nome certamente não escolhido ao acaso, esse é um nome conhecido de funerárias, enterram os outros, os mortos. 

Mas Clara resiste a ser in-corporada. Ela passou a vida naquele lugar, prédio de poucos andares, viveu com o marido e filhos ali. O prédio fala dela. 

resenhasonline 177.04: Aquarius, um mergulho de cabeça nas raízes do Brasil  | vitruvius

Com o sobrinho, Clara tenta transmitir o gosto musical, ao sugerir que ele impressione a namorada, diz: “Toca Bethânia para ela, mostra que tu é intenso.” É pretensioso supor que existe música boa e música ruim, toda manifestação cultural tem valor por representar um grupo. Mas no contexto do filme vale propor diferenças sim entre o que é bom e o que é ruim.

A cunhada se dirige ao marido, irmão de Clara e pergunta: “Antonio, me libera?”, para ir a um compromisso junto com Clara. Ao escutar isso, Clara de imediato se surpreende, revela a indignação quanto à dominação masculina encenada em sua frente.

Numa festa Clara conhece um homem, dançam. No carro, ao perceber que Clara não tem um seio, ele diz “preciso te levar em casa”. Não suporta essa ausência. 

A música O vizinho de Roberto Carlos é escolha certeira de Clara, revela o desejo de um entorno acolhedor e pacífico, um vizinho com quem possa reconhecer-se no território urbano, realidade oposta ao que ela está vivendo. 

Os filhos querem que ela venda o apartamento. Ela denuncia a falta de sensibilidade. 

O ENTORNO QUE ENLOUQUECE

Clara profere essas frases: “Estar endoidando sem estar louco.”  “A loucura está lá fora.” São frases que mostram o quanto o entorno pode ser enlouquecedor. O quanto a manipulação externa pode afetar as bases do pensamento sobre si mesmo, alterar as certezas internas, despersonalizar. Visto assim, por sua resistência, Clara se tornaria “a louca do Aquárius”. 

Mas Clara é jornalista e escritora, conhece as artimanhas de uma grande cidade, sabe reconhecer uma pressão seja ela velada ou declarada. Ao Diego, neto do dono da construtora, diz: “Você faz aquele tipo passivo agressivo.”, sabe identificar um canalha. Devolve a ele que ele fez curso de business mas não tem formação humana. Não criou caráter.

Neste momento Diego apela ao que é mais rasteiro em termos de desumanidade ao tentar lembrar a Clara que ela tem “pele mais escura.”, revelando com isso então que ela tem menos recursos, menos direitos e ele mais vantagens na escala social. 

É esse o momento em que Clara vira as costas, deixa Diego falando sozinho. Ela reconhece que para haver um debate é preciso que haja um outro que esteja na mesma condição de trocas de palavras, um mínimo espelho. O que ela se dá conta é que ali não vale a pena sequer uma palavra. Desiste. 

Vai jogar o único jogo que eles sabem jogar. Ela aprendeu a sobreviver, a para a sua defesa, para não sucumbir, vai usar as mesmas armas, as únicas que eles conhecem. Nesse momento conversa com um amigo jornalista e aciona o compadrio, o clientelismo, a corrupção, o jeito brasileiro. O tráfico de influências. E que ninguém duvide do caráter de Clara aqui. E que nenhum discurso moralista venha a criticá-la por isso. Afinal, quem impôs as regras do jogo? Quem vai morrer se não jogar o jogo?

Eles infestaram todos os apartamentos com colônias de cupins, para corroer a vida de clara, derrubar o prédio, destruir as estruturas.  

A arma de Clara, um câncer. Ela vai à construtora, mostra que conhece um passado comprometedor daquela gente e sentencia: “Eu prefiro dar um câncer em vez de ter um.” É a apoteose de Clara. É a nossa catarse social. 

Ficha técnica

Título original: Aquarius

Ano de Produção: 2016 

Diretor:  Kleber Mendonça Filho

Elenco: Sônia BragaMaeve JinkingsIrandhir Santos
Temas abordados: Memória. Corpo. Resistência.

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